Envelhecer é um terror
O medo de envelhecer não é natural, é construído (e o que a publicidade tem a ver com isso).
Brew #18
Fiz aniversário na última semana, - bem, pra mim que está escrevendo foi na última semana, mas para você que está lendo, agora, faz um pouco mais de tempo - e isso me fez refletir bastante sobre... envelhecer. Sim, meio óbvio.
Existe algo peculiar em fazer aniversário logo no início do ano: tudo vira uma grande questão sobre renovação de ciclos. Isso me leva sempre a começar o ano de um jeito muito introspectivo.
O primeiro cabelo branco que eu tive foi na sobrancelha. Esse é o lugar mais evidente possível para esse fio brotar, já que sempre tive sobrancelhas bem grossas e destacadas (na minha adolescência, era um terror; hoje virou moda?). Mas este ano, pela primeira vez, os fios brancos começaram a surgir nas laterais do meu cabelo. Quando bate a luz do sol, eles ficam cintilantes.
Esse, claro, não foi o primeiro sinal de envelhecimento que tive. A gente vai notando aos poucos essas mudanças: a recuperação de uma bebedeira demora mais (muito mais), pequenas rugas que não existam ontem, e uma valorização inestimável por locais de encontro que tenham cadeira. Mas são as marcas visíveis no corpo que mais incomodam. Culturalmente, essa mudança não é bem recebida. O que faz com que, individualmente, também não seja bem aceita.
Recentemente, assisti ao filme A Substância, de Coralie Fargeat, que está concorrendo ao Oscar (foi difícil fugir dos spoilers por tanto tempo). No filme, Demi Moore interpreta uma celebridade em declínio que decide usar uma droga secreta capaz de criar temporariamente uma versão mais jovem e "melhor" de si mesma. É um filme crítico aos padrões estéticos, à mercantilização da juventude e do corpo feminino, e à forma como a sociedade trata o envelhecimento. Mas, ao mesmo tempo - e na minha humilde opinião -, é um filme que entra em uma contradição. Isso porquê ele reforça, ainda que sob o viés de um humor/terror, o medo da decadência física. Como se o próprio ato de envelhecer fosse o grande jump scare. Como se a protagonista tivesse razão em recorrer a uma substância misteriosa, porque envelhecer acaba sendo, de fato, um horror.
A crítica da usuária Maia no Letterboxd expressa muito bem esse paradoxo:
"No gênero de terror, o corpo feminino idoso tem sido frequentemente usado como uma ferramenta para o medo. Câmeras dançam sobre rugas, vasos sanguíneos estourados, seios caídos, mãos e joelhos nodosos, colunas curvadas, veias varicosas, e pedem ao público que grite. Enquanto assistia ao corpo envelhecido de Elizabeth ser revelado para a plateia barulhenta da Midnight Madness, e os ouvia gritar como esperado, pensei na minha avó, pensei na minha mãe e pensei no meu próprio corpo, e nos meus medos em relação a ele, e me senti muito triste. A Substância é um verdadeiro deleite cinematográfico e uma adição bem-vinda ao gênero do horror corporal. Mas ao trocar momentos necessários de empatia pelo espetáculo, ele corre o risco de contradizer a mensagem desesperadamente importante que deseja transmitir."
E é assim que a velhice costuma ser retratada: como algo a ser evitado a qualquer custo. Podemos analisar isso sob o viés do cinema, mas – vide o tema dessa News – quero destacar o papel da publicidade nisso tudo. Como a cultura do consumo influencia nossa percepção sobre o envelhecimento?
Envelhecer é um “estado de espírito”?
No marketing atualmente, tudo parece girar em torno da Geração Z. O que eles comem, vestem, fazem e falam dita tendências, influenciam marcas e moldam estratégias de comunicação. Isso faz sentido, visto que eles são os consumidores do futuro, mas eu tenho pra mim que essa obsessão tem muito mais a ver com a nossa hipervalorização da juventude. Por exemplo, essa fixação ignora uma mudança demográfica importante: o Brasil está envelhecendo.
O número de idosos no Brasil cresceu 57,4% em 12 anos;
Enquanto o de crianças com até 14 anos de idade recuou 24,1%;
Temos mais de 32 milhões de pessoas com 60 anos ou mais no Brasil.
(Censo 2022)
Os consumidores do futuro são idosos. E quantos deles vemos na publicidade no Brasil? E de que forma são retratados?
No artigo “Ageism and the Promotion of Agelessness in Brazilian Advertising”, Gisela G. S. Castro discute o conceito de “ageleness”, promovido pela publicidade brasileira. O “agelessness” pode ser traduzido como a negação do envelhecimento, e a autora aponta como essa lógica desloca o envelhecimento para o campo da responsabilidade individual, de “estado de espírito”, e não uma questão social.
"[...] problematizamos o paradoxal ideal de crescer sem envelhecer no Brasil como um subproduto negativo do ethos neoliberal do eu empreendedor. Em nossa opinião, a dimensão sociocultural do envelhecimento, incluindo a produção de subjetividades, deve ser examinada. A nossa análise crítica da forma como a publicidade no Brasil apresenta os idosos parte do pressuposto de que as imagens, os sons e o teor do discurso afetam a forma como as sociedades se relacionam com esse grupo etário. Estereótipos negativos, preconceitos e valores morais aviltantes permeiam insidiosamente as práticas e o discurso sobre o envelhecimento. Estes podem, por sua vez, ser reforçados ou rejeitados. Como já foi referido, o discurso mediático participa na construção do imaginário social, produzindo uma carga afetiva que modula as nossas interações no mundo. (Castro, 2021).
Pelo menos duas vezes por dia vejo alguém surpreso com a foto de uma famosa que “nem parece” a idade que tem. O elogio vem carregado de um subtexto: o envelhecimento só é aceitável quando não deixa marcas visíveis. Quem "envelhece bem" é quem parece não ter envelhecido.
Uma das propagandas analisadas no artigo que mencionei é a da seguradora Prevent Senior. Em 2019, uma de suas campanhas usou o discurso "Acreditamos no empoderamento do adulto+". Castro aponta que, primeiro, que adulto+ é um termo eufemístico que evitava a palavra "idoso", mantendo a invisibilização da idade.
Segundo, o comercial trazia depoimentos de pessoas mais velhas afirmando que idade era apenas um número e vendia a ideia de que o envelhecimento é uma questão de mentalidade – ou seja, se você não se sentir velho, você não será velho.
É sintomático a Prevent Senior ignorar a responsabilidade coletiva e estrutural em relação ao envelhecimento. A empresa ganhou as manchetes dos jornais por seu envolvimento em um dos maiores escândalos da pandemia no Brasil. Durante a crise da Covid-19, a empresa foi denunciada por esconder mortes de pacientes e conduzir experimentos não autorizados com o chamado "kit Covid". A ironia é gritante: enquanto promovia a ilusão de um envelhecimento ativo e saudável, a empresa desrespeitava a dignidade e a vida real das pessoas mais velhas.
Esse exemplo me fez olhar de forma mais crítica outros tipos de publicidade. Se eu fosse fazer isso só analisando a indústria da beleza, ficaria fácil demais, porque é uma indústria que por si só capitaliza em cima de cremes, séruns, procedimentos estéticos, que servem justamente a todo esse discurso de que envelhecer é um horror – e possível de retardar pelo valor certo. Mas quero manter o desafio de buscar os discursos mais sutis da negação do envelhecimento.
A propaganda "Velhovens" da Skol, por exemplo, aborda a questão do envelhecimento de forma aparentemente positiva. Há momentos interessantes, como o questionamento sobre julgar alguém pela idade, mas a peça mantém o discurso de que “idade é um estado de espírito”. Essa mensagem pode parecer bem-intencionada, mas tem um subtexto problemático.
Primeiro, reforça a ideia individualista de que envelhecer é uma questão de mentalidade, ignorando os aspectos sociais e estruturais do envelhecimento. Além disso, embora tente quebrar o estigma do idoso como uma pessoa ultrapassada, o faz de uma maneira que ainda reforça o apagamento da idade. Existe uma grande diferença entre dizer “não sou velho - no caso, sou ‘velhovem’ - , eu surfo e pulo de paraquedas” e “sou idoso E surfo E pulo de paraquedas”. No primeiro caso, a velhice continua sendo algo a ser evitado, enquanto no segundo, ela é afirmada e ressignificada.
Mas nem toda a publicidade sobre envelhecimento segue o caminho do apagamento da idade. A Dove, por exemplo, é referência em trazer pessoas mais velhas em suas campanhas. O “Dove Pro Age”, por exemplo, é um produto que faz o trocadilho-crítica com os produtos anti-idade.
O comercial "O Tempo", do Banco Itaú, narrado por Fernanda Montenegro, conseguiu dialogar com o público idoso sem tratá-lo como um nicho isolado. A campanha reforça a importância do tempo e das memórias, valorizando a experiência e a trajetória das pessoas mais velhas.
Segundo o Estadão, o impacto da campanha ultrapassou seu público-alvo inicial, conquistando também clientes de outras faixas etárias. Isso mostra como representações autênticas criam identificação intergeracional e afetam positivamente não apenas os idosos, mas toda a sociedade.
A Silver Economy (ou economia prateada)
Essas abordagens positivas não são fruto apenas de uma conscientização espontânea das marcas - a motivação é sempre a mesma: dinheiro.
A chamada Silver Economy (ou Economia Prateada) é o mercado voltado para consumidores seniores, abrangendo bens e serviços que atendem às demandas específicas desse grupo. Esse segmento já movimenta cerca de 2 trilhões de reais por ano no Brasil e 15 trilhões de dólares por ano no mundo.
A lógica é simples: com o aumento da expectativa de vida e a queda na taxa de natalidade, a população idosa representa uma parcela crescente dos consumidores. Para as empresas, isso significa que investir nesse público é uma necessidade de adaptação à nova realidade demográfica.
A Silver Economy demonstra que a longevidade pode ser um ativo econômico, e não um fardo social.
No Guia Bits to Brands e WGSN para marcas brasileiras em 2025, a questão da inversão da pirâmide etária é mencionada como um fator que vai se aprofundar em como as marcas se comportam no futuro. Por exemplo, abandonando a segmentação feita por faixa etária e projetando produtos e experiências com base em necessidades coletivas:
“[...] Senhoras idosas são tão fãs de doramas quanto adolescentes, a nostalgia das câmeras digitais é tanto da geração que cresceu com celular na mão quanto de quem de fato tirava fotos com flash no espelho para postar no Fotolog, e “sérum” é uma palavra no vocabulário do recreio nas escolas.
É nesse contexto que as marcas precisam ser fluentes em diferentes formatos, celebrar marcos para além de fases da vida, buscar uma estética que representa um grupo sem excluir outros e se permitir surpreender por onde os seus produtos podem chegar. [...]”
Como podemos envelhecer melhor?
Etarismo é o nome que se dá ao preconceito contra pessoas com base na sua idade. De acordo com o boletim informativo da Organização Mundial da Saúde (OMS) Valuing Older People, "diferentemente de outras formas de discriminação, incluindo o sexismo e o racismo, o etarismo é socialmente aceitável, fortemente institucionalizado, amplamente não detectado e não contestado"
Como vimos no artigo da Gisela Castro, o poder da mídia na cultura de consumo informa narrativas que fazem parte “da pedagogia social que alimenta a desigualdade, a dominação e a opressão”. Por isso, precisamos estar atentos como as pessoas estão sendo retratadas na velhice pela mídia, pois isso molda a maneira como o envelhecimento é compreendido socialmente. É preciso que seja também representada a pluralidade das experiências do envelhecimento.
Mas precisamos ir além.
Não basta apenas mudar a narrativa na publicidade – é preciso transformar a realidade. Cobrar políticas públicas que garantam qualidade de vida para essa população. Falar sobre acessibilidade, inclusão digital, defender o SUS! Compreender que envelhecer é menos sobre espelho e mais sobre ter qualidade de vida.
Eu estou cá com meus fios brancos, mas não sinto vontade de voltar atrás no tempo. Eu gosto da pessoa que sou hoje, e o tempo tem tudo a ver com isso. Ele carrega as experiências que já acumulei, é por causa dele que me entendo melhor e sei lidar com os outros com mais empatia e paciência. Sou uma profissional melhor, minhas opiniões são mais profundas, minha visão de mundo é muito mais ampla.
No final das contas, envelhecer é bom demais.
☕ As vezes o filme A Substância não parece tão distante da realidade? No final do ano passado, saiu a notícia que bilionários estão investindo pesadamente em inovações tecnológicas para retardar o envelhecimento:
Jeff Bezos, da Amazon, investiu 3 bilhões de dólares na Altos Labs, start up com foco em “reprogramação biológica” - um processo para rejuvenescer células e potencialmente reverter o envelhecimento.
Peter Thiel, do PayPal, investiu milhões na Methuselah Foundation, que busca desenvolver tecnologias para regenerar órgãos e melhorar a saúde física e cognitiva — tudo isso visando prolongar uma vida saudável.
Sam Altman, da OpenAI, investiu 180 milhões de dólares na Retro BioScience, que tem como objetivo oferecer resultados que prolonguem a vida nos próximos quatro anos. [Fonte aqui e aqui]
O Jeff Bezos, por exemplo, tem uma fortuna estimada em mais de US$ 240 bilhões, fazendo dele a terceira pessoa mais rica do mundo (atrás apenas de Elon Musk e Mark Zuckerberg atualmente). Para colocarmos esse número em perspectiva: se o Jeff Bezos gastar 1 milhão de dólares por dia, ele demoraria 662 anos para gastar toda a sua fortuna.
Eu comentei na edição #10 da Brew sobre investimentos em IA para nos fazer trabalhar até mesmo dormindo e que uma das fronteiras do capitalismo é a colonização do sono. Por outro lado, nessa outra fronteira, o foco é prolongar a vida... talvez porque, com tanto dinheiro acumulado, uma vida só não dê conta de gastar tudo.
E se pensarmos em como regulações para medicamentos e tratamentos médicos costumam ser lentas e burocráticas — com anos de testes e dilemas éticos no caminho —, a ideia de uma droga experimental surgindo de repente, como em A Substância, não parece mais tão ficção assim.
Ainda no tema de A Substância e como a velhice é retratada no cinema…
☕ “Hagsplotation” é um subgênero cinematográfico que emergiu nos anos 1960, caracterizado por filmes que retratam mulheres mais velhas de forma negativa, frequentemente como figuras mentalmente instáveis ou violentas. Essas produções não apenas reforçam o medo do envelhecimento feminino, mas também transformam o próprio corpo envelhecido no elemento de horror.
☕ O artigo "Horror and Hagsploitation" de Rachel Barker, analisa como o subgênero explora os medos relacionados à velhice e sua representação no cinema de terror. [Link aqui]
☕ Já o artigo "Hagsploitation: Problematic or high brow camp?" discute se essas narrativas apenas perpetuam estereótipos negativos ou se podem ser vistas como uma crítica social embalada em exagero e sátira. [Link aqui]
☕Enquanto o cinema e a publicidade tentam nos convencer de que envelhecer é um horror, Maria Bethânia nos lembra que envelhecer é um privilégio. Em uma entrevista marcante, ela fala sobre o tempo, a maturidade e a beleza de viver cada fase da vida sem medo.
Finalmente tomei vergonha na cara e organizei a identidade visual da Brew em uma apresentação... apresentável. 😌
Se quiser ver a identidade completa, está tudo aqui.
Assista ao vídeo-manifesto da Brew:
Você já ouviu falar em "risada de rico"?
Vi por aí um vídeo de um casal no TikTok brincando que estão treinando a risada para quando forem ricos. Até parece piada...
... Mas aí me deparei com outro vídeo, onde um grupo de homens – claramente ricos – jogam golfe e soltam exatamente essa risada de rico! Dá pra sentir a riqueza só na risada.
Será que tem um fundo de verdade nisso?
Algoritmo é uma coisa que parece mágica, pois também vi por aí o vídeo do @etymologynerd explicando que o riso é muito mais um sinal social do que apenas uma reação ao humor. Estudos mostram que rimos mais em conversas comuns do que diante de piadas, porque o riso serve para reforçar laços e indicar pertencimento. É basicamente um ato performativo - por isso, é mais provável que você ria quando está com outras pessoas do que sozinho.
Ele também explica que bebês começam não rindo tanto, mas passam a rir mais conforme observam os outros rindo. E é na infância que começamos a imitar o tipo de risada que ouvimos de outras pessoas ao nosso redor.
E aí vem a parte interessante: estudos indicam que pessoas ricas tendem a rir de forma mais dominante e despreocupada, como um sinal de status. É uma risada que afirma poder e reforça a hierarquia social. Ou seja, a tal "risada de rico" pode ser um comportamento subconsciente para “marcar território”.
Quem quiser conferir a explicação completa do @etymologynerd, o link está aqui.
Post super relevante. Parabéns (e pelo aniversário também). Isso me fez lembrar de um post que escrevi há alguns anos (2017!!!), "A velhice pede uma nova narrativa". Se me permite, coloco abaixo o link. Espero q goste. Um trechinho: Segundo Michelle Lee, editora da revista Alllure, “temos que parar de reforçar, mesmo que de forma sutil, que velhice é algo a ser combatido. Quando falamos anti-aging, colocamos os velhos na mesma conversa de anti-virus ou spray anti-fungo”..
https://medium.com/culture-drops/a-velhice-pede-uma-nova-narrativa-df630773e660
adorei este post! vou indicar <3