Escrevendo História: O Caso BIC
A história da marca que está na gaveta de todo mundo - e o que podemos aprender com ela.
Faz tempo que eu queria trazer alguns estudos de caso para a Brew. Existem tantas histórias de marcas fascinantes por aí, mas decidi começar com a BIC por uma razão bem simples: aposto que vocês têm pelo menos uma caneta BIC dentro de um copo em cima da sua mesa, espremida nas páginas de uma agenda ou perdida na gaveta da sua mesa de trabalho.
A BIC conseguiu algo que poucas marcas alcançam: virou um objeto cotidiano praticamente universal. Presente desde o estojo dos estudantes até pendurada em uma corda em um departamento público, qual o segredo por trás dessa onipresença?
A missão da BIC sempre foi cristalina: entregar produtos de qualidade, seguros, acessíveis, essenciais e confiáveis. E convenhamos, eles cumprem essa promessa com maestria.
Então, que lições podemos extrair dessa marca que transformou simplicidade em um império global?
O Poder de um Produto Bem-Feito
Antes da popularidade das canetas esferográficas, as pessoas escreviam principalmente com canetas-tinteiro (fountain pens). E eram canetas que tinham vários problemas irritantes: a tinta demorava uma eternidade para secar (imaginem borrar tudo ao virar a página), vazavam constantemente, manchavam as mãos e roupas, e eram uma dor de cabeça em viagens ou mudanças de temperatura.
Em 1930, um jornalista húngaro chamado László Bíró estava observando crianças brincando com bolinhas de gude numa poça d'água. Percebeu que as bolinhas deixavam rastros líquidos perfeitos enquanto rolavam. Foi quando teve o estalo: que tal aplicar esse princípio numa caneta?


László se juntou com seu irmão György, que era químico, e começaram a experimentar. Desenvolveram um protótipo que usava uma esfera minúscula numa ponta metálica, com tinta viscosa que secava instantaneamente ao tocar o papel e não secava dentro do reservatório. Eis o surgimento da caneta esferográfica (ballpen ou ballpoint, em inglês - justamente por conta da ponta em forma de esfera).
Mas a invenção ainda não estava pronta para dominar o mercado. As canetas eram caras para produzir e tinham defeitos constantes - vazavam, entupiam, falhavam na hora H. Foi aí que entrou Marcel Bich.
Marcel era gerente de produção numa fábrica de tintas. Em 1944, pediu demissão para apostar numa ideia meio maluca: comprar os direitos da tecnologia dos Bíró e fazê-la funcionar de verdade. Em 1945, se juntou com Edouard Buffard e fundou a PPA (Porte-plume, Porte-mines et Accessoires) numa fábrica pequena em Clichy, nos arredores de Paris.

A obsessão de Marcel era simples: criar a caneta esferográfica perfeita. Não a mais bonita, não a mais sofisticada, mas a perfeita para o que se propunha a fazer. Ele passou quase dois anos desmontando canetas existentes, analisando cada falha, cada vazamento, cada entupimento.
Enquanto László entendeu que as esferas deixam rastros e isso poderia ser aplicado para canetas, Bich percebeu que a esfera precisa girar como uma roda perfeita. Ou seja, precisava ser totalmente lisa e uniforme. Por isso, Marcel investiu em tecnologia suíça de relojoaria que conseguia moldar metal com precisão de 0,01 milímetros. Com isso, produziu esferas de aço inoxidável perfeitas de 1 milímetro.
Outro desafio era a tinta: não poderia ser muito líquida (vazaria) não poderia ser muito viscosa (entupiria), não poderia secar dentro do tubo e deveria secar imediatamente quando em contato com o papel. Diferente de outras empresas que compravam tinta de terceiros, Marcel decidiu desenvolver sua própria fórmula para ter controle absoluto sobre a qualidade e características da tinta (lembra que ele trabalhou em uma fábrica de tintas? Então, isso foi fundamental).
Em dezembro de 1950, nasceu a BIC Cristal. Marcel encurtou o sobrenome Bich para BIC por sugestão de um especialista em publicidade - tinha que ser algo fácil de lembrar e pronunciar globalmente. O produto era revolucionário: uma caneta que custava 19 centavos, quando as concorrentes custavam o equivalente a algo em torno de 10 reais.
O design da Cristal é um case de genialidade disfarçada de simplicidade. Aquele corpo transparente não é só estética - permite ver quanto de tinta resta. O furinho na lateral equilibra a pressão atmosférica, evitando vazamentos em altitudes elevadas (pensaram nos pilotos e engenheiros que trabalham em grandes alturas). A cor da tampa mostra qual a cor da tinta e, desde 1991, o furo na tampa garante que se alguém a engolir por acidente, consegue respirar até o socorro chegar – detalhe importante para um produto que está presente em escolas.
Cada elemento foi pensado para resolver um problema real. É design funcional no seu melhor: invisível quando funciona, óbvio quando falta.
Em apenas um ano de produção, a BIC já exportava para a Bélgica e vendeu 3,5 milhões de canetas. No final dos anos 50, eram 372.000 canetas por dia - 82 milhões por ano. Hoje, são mais de 300 milhões de canetas BIC vendidas por ano apenas no Brasil. No mundo, são 28 milhões de produtos BIC vendidos por dia. Para ter noção da escala: cada 3 segundos alguém no planeta está comprando algo da BIC.
Estratégia de Branding e Design
"Não há marketing que salve produto ruim" - essa máxima define a BIC perfeitamente. Eles começaram com um produto sólido e só depois se preocuparam em comunicar seus diferenciais. E a BIC consegue fazer isso de forma muito inteligente.
Esse ano, por exemplo, a marca utilizou de Inteligência Artificial para recriar a letra de Shakespeare e escrever Romeu e Julieta inteira utilizando apenas uma BIC (e ainda sobrou tinta). Além de utilizar IA de uma forma inteligente e que faz sentido para a marca – ao invés de outras publicidades que estamos vendo por aí – comunica muito bem o atributo da marca: uma caneta que você vai usar muito, sem falha.
Os anúncios da BIC sempre foram geniais em capturar verdades universais: "Biro pens are the most stolen object in the world" (canetas BIC são o objeto mais roubado do mundo), a campanha "A lotta You in every stroke" (Um pouco de você em cada traço) mostrando desenhos infantis, ou "Food for thought", transformando o hábito de mastigar a ponta da caneta em elemento criativo. Cada peça comunica os atributos da marca sempre conectando com experiências reais das pessoas.








O logo da BIC também merece destaque. Aquele menino laranja com cabeça de caneta foi criado por Raymond Savignac em 1961, inspirado em estudantes - um dos principais públicos da marca. Savignac ficou duas décadas na empresa, criando mais de 15 pôsteres. Essa consistência visual ajudou a fixar a BIC no imaginário coletivo.
A diversificação veio naturalmente. Nos anos 70, lançaram isqueiros descartáveis. Nos 80, barbeadores descartáveis que deram uma surra na Gillette (que dominava o mercado há 70 anos). A estratégia era clara: produtos descartáveis, acessíveis e funcionais. Mesma rede de distribuição, mesmo público, mais necessidades atendidas.
Nem Tudo é Sucesso
Mas como toda marca que ousa inovar, a BIC também colecionou alguns tropeços épicos que ensinam tanto quanto seus sucessos.
Em 2012, a BIC lançou canetas especificamente "para mulheres" - essencialmente as mesmas canetas Cristal, mas em tons pastéis e com design mais "delicado". O resultado foi um dos maiores vexames de marketing dos últimos tempos.
As resenhas da Amazon viraram comédia involuntária. Uma usuária escreveu: "Finalmente uma caneta que entende que meu cérebro feminino não consegue lidar com cores muito fortes!" Outra: "Antes eu só conseguia escrever receitas e listas de compras, mas com essa caneta consegui escrever poesia!"
A Ellen Degeneres, no auge da popularidade do The Ellen Show, fez uma crítica hilária à marca: “esse tempo todo estávamos usando canetas para homens? Éca!”
O que a BIC não percebeu é que estava tentando "consertar" um problema que não existia. Afinal, canetas funcionam igual para todos e tentar segmentar por gênero soou condescendente e desnecessário. A lição aqui é brutal: quando seu produto já é universal, não tente limitá-lo artificialmente (e, principalmente, de uma forma tão machista e fora de tom).
Outro flop aconteceu nos anos 80 quando alguém na BIC teve a ideia brilhante de aplicar a filosofia de "produtos baratos e descartáveis" no mundo dos perfumes. Lançaram fragrâncias de baixo custo, vendidas em farmácias e supermercados.
O problema é que perfume não é caneta. Enquanto canetas vendem funcionalidade, perfumes vendem sonho, aspiração, identidade. Aplicar a lógica do descartável numa categoria que vive de valor percebido foi um tiro no pé.
A estratégia falhou porque subestimou a psicologia do consumo. Ninguém quer usar um perfume "barato e descartável" - isso contradiz totalmente a experiência que buscamos numa fragrância. A marca que construiu sua reputação na simplicidade funcional tentou entrar num território que exige complexidade emocional.
A linha foi descontinuada, mas deixou uma lição valiosa: reconheça os limites do seu território de marca.


Por Que a BIC é Relevante Ainda Hoje
Esse ano, a BIC completa 75 anos e não ficou parada no tempo. Em 2020, fez a aquisição estratégica da Rocketbook, marca americana de cadernos inteligentes reutilizáveis. Os produtos permitem escrever, digitalizar o conteúdo via app e apagar tudo para usar novamente - conectando o analógico ao digital. Em 2022, adquiriu marcas de tatuagem temporária (Inkbox e Tattly), além da AMI, startup francesa de tecnologia de realidade aumentada.
Além disso, a empresa tem investido em sustentabilidade e economia circular com o programa “Writing de Future, Together” (Escrevendo o Futuro, Juntos), que tem como meta inovar os produtos da marca. As iniciativas incluem: canetas recarregáveis, barbeadores de bambu, embalagens livre de plásticos, pontos de coleta em escolas e universidades que transformam canetas usadas em móveis urbanos, isqueiros feitos 100% com componentes reciclados, entre outros.
A BIC continua relevante porque construíram algo que toda marca deve aspirar: credibilidade baseada em performance consistente.
Se eu puder resumir o sucesso da marca seria:
Produto sólido e confiável: Enquanto outras marcas perseguem inovações disruptivas, a BIC aperfeiçoa o que já funciona. Sua caneta de 2025 escreve tão bem quanto a de 1950.
Identidade forte e consistente: O visual da BIC mudou muito pouco ao longo das décadas. Essa consistência criou uma âncora visual poderosa - você reconhece uma BIC a metros de distância.
Comunicação clara dos diferenciais: A missão de “entregar produtos de qualidade, seguros, acessíveis, essenciais e confiáveis” está presente em toda comunicação da marca.
Sabem quando recalcular a rota: Os fracassos das canetas femininas e dos perfumes mostram que a BIC aprende com os erros e não insistem em estratégias que não funcionam.
No final das contas, a BIC prova uma verdade incômoda para quem vive correndo atrás da próxima tendência: o bem-feito vende. Simplicidade funcional nunca sai de moda.
Escrever à mão - com BIC ou qualquer outra marca - é mais importante do que a gente normalmente imagina.
☕ O artigo "Comparando a Memória entre Escrita Manual e Digitação", por exemplo, mostra que você exercita a memória escrevendo à mão por envolver conhecimento motor adquirido durante a escrita manual.
☕ E o artigo “A Neurociência da Escrita: Escrita Manual vs. Digitação — Quem Vence essa Batalha?” afirma que “escrita manual ativa uma rede mais ampla de regiões cerebrais envolvidas no processamento motor, sensorial e cognitivo”.
☕ Hoje vou compartilhar com vocês uma lista de tipografias gratuitas para baixar no Gumroad. Disponha: link aqui.
☕Vou passar aqui para indicar o recém-lançado Substack da minha amiga Cecília. Não por ser minha amiga, mas porque vale a pena seguir sim e não é minha culpa se tenho amigas geniais. Em "O que a neurociência tem a ver com design?", ela mergulha fundo na pesquisa do neurocientista Anjan Chatterjee para explicar por que nossos cérebros são tão atraídos pela beleza. Link aqui.
☕Eu estive na Bienal do Rio — e quem não esteve? — e tenho que compartilhar o livro mais interessante que achei por lá. Ou isso pode ser chamado de livro? "Queria ter ficado mais" reúne uma série de histórias escritas por mulheres em diferentes cidades do mundo. Cada história vem em formato de carta, endereçada na cidade em que se passa e com uma ilustração lindíssima no verso. Além do formato super criativo, o livro mexe com aquela nostalgia de receber uma carta — uma coisa tão pessoal e que te faz sentir tão especial, que não tem nada hoje em dia que replica esse sentimento. Link aqui.